sábado, 6 de dezembro de 2008

És muito mais forte do que eu, Sofia

És muito mais forte do que eu, Sofia.

Soube-o desde aquela tarde de 3 de Janeiro de 2004. Nove luas cheias antes de nasceres. Dez, porque naquele ano Agosto foi um longo mês.

Nesse mesmo dia fui a Almeirim. Olhei a mulher centenária num quintal com terreiro cimentado. E espaço guardado para crescerem três laranjeiras. Alheou-se do bolo com cem velas e das memórias de tempos difíceis de início de século para se debruçar no interior de mim.

E viu-te, tenho a certeza. Olhou-me com uns olhos profundos de quem já viveu mais que um século, de quem conhece os segredos das marés, as luas, a força que exercem sobre as águas e que faz inundar aldeias e secar searas.

Soube-o também no dia em que subi o dique de Valada. E quando tivemos o acidente e aceleramos pulsações e resistimos.

Soube-o agora, mais uma vez. Quando acordaste na maca do hospital e te abraçaste a mim.

Tu acordavas da anestesia. Eu quase adormecia por causa de ver um fio de sangue teu.

E foste muito mais forte do que eu, Sofia. Eu sabia.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Assim vou eu

No dia em que o meu patrão confidenciou ao mundo que fazia gazeta no escritório onde trabalhava há 30 anos pediu-me que trabalhasse mais. Foi há um ano.

Na crónica de hoje diz que tem dinheiro. E que por isso lhe custa falar desse material corruptível. Eu não o tenho, mas mesmo assim apetece-me mudar de vida.

Estou indecisa entre candidatar-me a um lugar de secretária num escritório de advogados e mandar um currículo para uma empresa de limpezas industriais.

Quero comprar um terreno no campo. De preferência com uma vereda e um chorão onde no Outono me possa refugiar num manto de folhas secas.

Quero comprar uma casa de madeira com uma parede e tecto de vidro – não me arrependo do que fiz, os erros ensinam a equivocarmo-nos com mais ponderação – e viver num t4 amplo e imperceptível.

Quero acordar de madrugada e ver a erva coberta de geada. Depois de adormecer a olhar a lua. Enevoada, repousando levemente sobre uma nuvem transparente. A esfumaçar. Como quem acaba de fazer amor.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Lezíria


Um púcaro de café ao lume
Apagado.

Debaixo da ponte
Um queixume.

Ao longe, um ligeiro cheiro a estrume
As couves cavadas.

Ferodo,
Cheiro do caminho-de-ferro em terra.

O ferreiro vem tarde
Tem as mãos calejadas de um espeto de pau.

Ligeiro, o campino
Corre atrás o menino, franzino.

Lezíria, grande
Como a fome dos que a amanharam.

Recuso-me a morrer à secretária

Recuso-me a morrer à secretária
- Vou reduzir substancialmente a minha carga horária

Espreitar-te na janela redonda
Por onde olhas o mar

Os poetas conhecem-se bem
Como os amantes

Navegam nus, intensos, quentes.
Na imensidão das gentes

Às quatro da tarde em ponto
- Vou ao teu encontro

Vais reconhecer o meu lenço
Eu espero, esvoaço e fermento.

domingo, 19 de outubro de 2008

Os Vizinhos

Três homens despidos na varanda
De camisa aberta
As mulheres em parte incerta

Assam febras
Esperam que se ponha a mesa
Falam da presa

Encardem de fumo
A roupa branca
Que a rapariga estendeu de alguidar na anca

A mulher que trabalha na fábrica
Chegou anafada
Mal paga, inconformada

Já deitou a toalha na mesa
Os miúdos nos beliches
Encheu de vinho os copos, preparou “quiches”

Veste a camisola rendada
Preta e ligeiramente desbotada
A marcar a silhueta apertada.

Com elevado teor de álcool na entranha
Um dos homens despidos da varanda
Vai ter com a mulher à cama.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Lição número 1: para a mãe

- Quando cresceres vais para a escola dos meninos grandes.
- Mas eu não quero ir para a escola.
- Não queres aprender a ler?
- Não, quero ser mãe!
- Mas para seres mãe e ajudares o teu filho tens que saber ler. Não queres trabalhar como a mãe?
- Não, porque depois canso-me.

domingo, 14 de setembro de 2008

A Sofia (porque um dia te posso faltar)

...
Acima de tudo: vive.
Para ti. Por ti. Através de ti para os outros. Verdadeiramente. Intensamente. Inequivocamente.
Nem todos poderão sentir o ziguezaguear da curva na livraria do Mondego, o sol a aquecer numa tarde de Maio, o brilho das águas do Dão.
Se isso não acontecer haverá sempre o Tejo em Junho, o murmurar os salgueiros, a eterna e doce água.
O voo raso da borboleta, a indecisão da flor, a teimosia dos ramos aventureiros.
Aquele pássaro acolá não quer poisar. Acredita que se parar jamais voltará a voar. Como se a imobilidade lhe queimasse as asas. A derradeira possibilidade.
Escolheu voar.
E se alguma vez cair - fá-lo-á feliz.
És esse pássaro?
Segue apenas o coração. Ele guiar-te-á nos vales mais fundos e nos trilhos mais obscuros. E para o ouvires distancia-te o tempo e o espaço de que necessitares. Ainda que isso represente a eternidade.
E se a eternidade for o caminho infinito não receies. Segue esse círculo contínuo de espirais entrelaçadas que leva a um sítio que temos a sensação de nunca alcançar.
Mesmo que pareça impossível continua a tentar.
Acreditar, sempre. Faz parte do sonho.
Sonhar faz parte da vida.
O rio será sempre doce, mesmo que por debaixo da água parada e tranquila se escondam os fundões mais sombrios. Se saltares, em bicos de pés, suavemente, sem beliscar a maré, alcançarás sã e salva, o outro lado da margem.
Acima de tudo: vive.
...

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Metamorfose ou o milagre da vida

Maria seguia
De ventre fecundo
E de olhar profundo
De esperança no mundo

Sentou-se no chão
Achou-se a esperar
Um fio de água a fez despertar
Milagre da vida ia espoletar.

Entre brancas paredes
O corpo a mudar
O coração a pular
O ventre a transmutar

Pensou que era o fim
Suportou a dor
Suspirou por’mor

Um fio de seda a fez acordar
Estava a ser cosida pr’a dar de mamar
Milagre da vida a querer vingar.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Voo de circunvalação


(ou descrição da cidade de Viseu a partir de um balão de ar quente)

O cesto de verga balouça levemente com a aragem da manhã de Junho.
De repente um rasgo de vento mais forte. O balão de ar quente insufla no pátio frente à catedral, empurrado pelo queimador que cospe fogo.
Dois miúdos correm no empedrado das ruas para ver o vulto que se afasta a dançar. A mulher de preto que atravessa a rua, olha para trás de soslaio, depois para cima.
O balão de repente ganhou asas de pássaro, magia de um queimador de fogo. As gentes tomam tamanho pequeno. E as coisas também.
O pico da catedral da cidade está ao mesmo nível. O ponto mais alto de Viseu.
Telhados amplos, telhados rombos, telhados de vidro. Alguns de lata. Pilaretes, toldos, escadas de pedra e candeeiros de rua. E apitos de carros e mais carros. Cordões de carros. Confusões de trânsito. E as copas das grandes árvores por onde respira a cidade.
Roupas estendidas em arames sobre toldos de lojas. É uma viagem de circum-navegação em espaço aberto pelos limites da circunvalação.
O balão segue às riscas, cor do arco-íris pelo céu azul a contrastar com o cinzento das cores, dos muros de pedra, as águas furtadas de chapéus bicudos virados para o céu.
Fumos de fábrica, cheiros de pão e bolos, o fresco da manhã no cabelo. Portas de museu, recantos históricos, um fio de água.
É uma paisagem de colinas, ruas estreitas, de casas senhoriais, moradias, prédios de tamanhos irregulares, antenas que se multiplicam de fios e ligações.
Lá do alto vislumbram-se perfis de prédios modernos de varandas amplas e terraços. Quadrados de cor verde-jardim. Pedaços de azul que são as piscinas dos hotéis e das moradias de luxo com espreguiçadeiras vazias.
É uma cidade museu em miniatura, mistura de tempos, colagem de uma e outra época, que se avista da tranquilidade do céu azul. Burgo de Viriato a pulsar ao ritmo do mundo moderno.

Aprendiz de fliscorne

O homem deitava-se na enxerga
Depois da taberna

Acendia um cigarro
Com o hálito incendiado

E rogava pragas
Às moscas e às chagas

O cinzeiro
Era o esteiro.

Da pauta pouco ou nada sabia
Tocava de ouvido, convencido

Afinado em Sim Bemol
Improvisava antes de se deitar sobre o lençol

O homem tentava aprender o fliscorne
Por não ter merecido o trombone.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Viúva Negra

Para sair à noite a Viúva Negra vestiu-se de vermelho
Despediu-se do seu vizinho, o Escaravelho.

Ninguém diria que acabava de tecer um casulo
Para onde levaria a vítima - um canto obscuro.

Silenciou-se no caminho
Pôs-se cautelosamente à espera com o ancinho

O pente dourado que usa nas doces conversas de café,
Enquanto eles não caem a seus pés.
Rendez -vous

A vida moderna matou o amor
A viúva negra matou sem provocar dor.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O elogio do velho

Na biblioteca entrou arrojado
O velho – desdentado, de ar desmaiado

Consumiu-se no meio dos livros
De tempos idos, outros perdidos

Recordou vitórias de atleta corrido
A perseguir metas, desmedido

O velho entrou desbocado
E à figura alta deitou o olho alado

Não deixou por mão alheia
A vontade de lhe lançar a peia

Chamou a rapariga no meio da rua
Entre andaimes de obra fez uma jura

A rapariga de cabelo escuro virou-se de repente
Viu um susto de gente

- “Esse corpo é seu, não mente?
Olhe que não dura para sempre!”

Menina Estela

Menina Estela vivia em Agruela
Tinha 77 anos e uma vela
Que levava sempre à missa
- era premissa -

Dançava ao som da panela de pressão
De medir a tensão, descompressada
Sem a pressa desenfreada, coitada
De quem tem um coração.

Bebia copos de vinho tinto
No café do Jacinto
Nunca casou nem amuou
Com os homens que bem amou.

Menina Estela ficava à janela
A ver passar a procissão
E os andores forrados de flanela
Que a inspiravam nas noites de costura e solidão.

Coseu o fato que a levou ao salão
No momento da comunhão
E bordou o manto de oiro e paixão
Que a acompanhou ao caixão.

(À Perpétua, menina avó, que me ensinou a voar. Guardava no quarto dos sonhos uma mala de verniz preto, fato inteiro para o dia completo, sempre fiel ao seu amor)

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Consulta de ginecologia

Na sala de espera aguardou ela
Enquanto do “guichet”
Não chamavam o seu número do “ticket”
...
A senhora do lado fazia “croché”
E o marido da outra mulher
Enrolava tabaco, mascava “chiclê”
...
A cadeira esguia
Continuava vazia
À espera da doente que se seguia
...
A médica calçou as luvas brancas
Discorreu sobre precauções tantas
E vislumbrou ovulações quantas
...
No ecrã viu um folículo
Num estranho cubículo
Parecia ridículo
...
A mulher ovulava
A médica argumentava
A recepcionista não se calava
...
O marido permanecia incomodado
Ligeiramente desmaiado
De pálida face, desaconselhado
...
Da consulta de ginecologia
Tinha acabado de sair Maria
Com a sua mania de fazer poesia.
...

Grávida de desejo

Esta noite acordei com sede de ti
Deixas-me grávida de desejo
Num secreto e tal ensejo

Devorei um pêssego
Redondo como a lua
Maduro de tanto esperar

Os despojos,
Mergulhei-os sobranceiros
Atrás do damasqueiro

Levei as unhas à terra
Desapareci na espera
Trouxe pedras e cristais azuis

Dos restos finais
Do fruto que tive
E não tenho mais

Sob o manto do crepúsculo
Remexi no lusco-fusco
Enterrei sobejos tais

Acordei com sede de poesia
E mesmo antes de ver a luz do dia
Tive a sensação de te ver aqui

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Diálogo secreto

Sabes que gosto de ti?
Nunca ninguém chorou assim no meu ombro

Consegui sentir o peso da dor que se ri com os teus olhos azuis
Trocamos a alma em dez segundos de libertação
Tu falas de ti através do olhar profundo que crês secreto
Eu dou de mim em palavras de comiseração

Sabes que gosto de ti?
Os azulejos da casa ouviram os nossos sonhos
A laranjeira dançou e não sabe que o seu fruto será eterno

Imagino-te longe deste mundo
Um anjo
De cabelos de oiro.

A Lua

O gato riscado viu-me esta noite a olhar a lua
A levantar a cortina transparente do meu quarto
A expor-me à janela

A luz às vezes cega
Por isso é que gosto dos dias em que os lagos não reluzem
E os mochos não piam
Espelhados, amargurados

A lua, disse-lhe eu
Mas na verdade procurava o conforto da escuridão
Para enxergar a alma
Ver o que o dia não deixa

Desprender-me da movimentação das horas
E mergulhar nas minhas convicções
A lua, disse-lhe eu.
E apenas o que eu procurava eras tu.

(À minha querida Sandra que ama a lua, os gatos e a vida)

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Aldeia Galega

- É da aldeia? Da aldeia galega?
Beberico o café, exalto-me ligeiramente nos saltos altos e olho as minhas unhas vermelhas.
- Da aldeia? Galega? Não…
A mulher sorri e volta a sentar-se na esplanada, desculpada.
E dou por mim a regressar à redacção, a olhar as pedras da calçada e a imaginar-me essa mulher da aldeia. Galega.
Tem decerto um regaço de filhos e não se preocupa em organizar assuntos por páginas.
Acorda às sete da manha e sorve uma chávena de café. Também.
Café de borras.
Café de borras e os filhos todos no regaço quando acorda.
Eu regresso às páginas de jornal.
Tenho a minha filha no regaço nos intervalos da máquina que imprime o papel.
E que às vezes borra.
Contudo tenho hoje também um ramo de begónias vermelhas sobre a mesa.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Senhora de Mim

Da minha alma sou dona e senhora
Leoa, predadora…
Carneiro enrolado nas manhãs de imaculada aurora.

Durmo e rumino sobre os sonhos
Peço boleia às nuvens dos outros
Navego no bote à deriva, ouvidos moucos.

Num instante sinto no ventre
A vontade de repente
De te ter aqui.

Sou senhora de mim
Ajeito o meu xaile num frenesim
Deito-me enganada sobre o capim.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Carta a Sam


Todas as mulheres são castradoras.
Por estranho que possa parecer, Sam, naquele sábado aprendi muito.
Segui por aquela rua estreita e encontrei a casa feita de barro.
Esperavas-me à porta. Como se tivéssemos um encontro de amantes.
Depois falaste no meu perfume de mulher.
A varanda envidraçada, o sol do campo, em Vila do Paço (Torres Novas), um chá com leite a meio da manhã.
Quadros, música clássica, uma cama escondida por detrás de um biombo. Um robe pendurado num tronco de árvore.
Não há mulheres na casa.
Há latas de conserva. Uma escada de madeira. Um sofá com um tapete de pele. Armários para arrecadar tudo o que faz um homem feliz. Programas de computador, livros de arte.
Múltiplas ramagens nascem da raiz da casa e atingem as vidraças.
O chá arrefece na mesa.
Falamos do sexo dos anjos, do sexo que os miúdos descobrem aos 16 anos e que as miúdas descobrem muito mais cedo. Amadurecidas. Como os frutos que pendem das árvores ali à frente.
Falamos das mulheres castradoras. Da missão de ser mãe. Da mulher que ser deixar de ser mulher. Para ocupar o lugar do homem.
Concordo Sam. Nesse dia aprendi muito, por entranho que possa parecer.
Depois recebi as flores envenenadas. Avisaste-me, Sam, de que deveria ter cuidado.
Tal como tu, que vieste da Austrália a Portugal guiado por estranhas visões, também eu encontrei a tua casa de barro para conhecer a verdade.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Primeira história ou a menina borboleta

Foi há pouco menos de trinta e um anos.
Num jardim de um país rural à beira mar.
A menina passava os dias a voar no quintal da avó.
Com o voo rasante da borboleta fintava cardos e brincos de princesa.
Nem por um segundo desligava as asas.
Um momento de descanso apenas e não mais poderia voar.
Entre viver eternamente no desgaste do voo e ficar para sempre rendida a avistar o céu da terra preferiu a liberdade…