domingo, 14 de setembro de 2008

A Sofia (porque um dia te posso faltar)

...
Acima de tudo: vive.
Para ti. Por ti. Através de ti para os outros. Verdadeiramente. Intensamente. Inequivocamente.
Nem todos poderão sentir o ziguezaguear da curva na livraria do Mondego, o sol a aquecer numa tarde de Maio, o brilho das águas do Dão.
Se isso não acontecer haverá sempre o Tejo em Junho, o murmurar os salgueiros, a eterna e doce água.
O voo raso da borboleta, a indecisão da flor, a teimosia dos ramos aventureiros.
Aquele pássaro acolá não quer poisar. Acredita que se parar jamais voltará a voar. Como se a imobilidade lhe queimasse as asas. A derradeira possibilidade.
Escolheu voar.
E se alguma vez cair - fá-lo-á feliz.
És esse pássaro?
Segue apenas o coração. Ele guiar-te-á nos vales mais fundos e nos trilhos mais obscuros. E para o ouvires distancia-te o tempo e o espaço de que necessitares. Ainda que isso represente a eternidade.
E se a eternidade for o caminho infinito não receies. Segue esse círculo contínuo de espirais entrelaçadas que leva a um sítio que temos a sensação de nunca alcançar.
Mesmo que pareça impossível continua a tentar.
Acreditar, sempre. Faz parte do sonho.
Sonhar faz parte da vida.
O rio será sempre doce, mesmo que por debaixo da água parada e tranquila se escondam os fundões mais sombrios. Se saltares, em bicos de pés, suavemente, sem beliscar a maré, alcançarás sã e salva, o outro lado da margem.
Acima de tudo: vive.
...

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Metamorfose ou o milagre da vida

Maria seguia
De ventre fecundo
E de olhar profundo
De esperança no mundo

Sentou-se no chão
Achou-se a esperar
Um fio de água a fez despertar
Milagre da vida ia espoletar.

Entre brancas paredes
O corpo a mudar
O coração a pular
O ventre a transmutar

Pensou que era o fim
Suportou a dor
Suspirou por’mor

Um fio de seda a fez acordar
Estava a ser cosida pr’a dar de mamar
Milagre da vida a querer vingar.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Voo de circunvalação


(ou descrição da cidade de Viseu a partir de um balão de ar quente)

O cesto de verga balouça levemente com a aragem da manhã de Junho.
De repente um rasgo de vento mais forte. O balão de ar quente insufla no pátio frente à catedral, empurrado pelo queimador que cospe fogo.
Dois miúdos correm no empedrado das ruas para ver o vulto que se afasta a dançar. A mulher de preto que atravessa a rua, olha para trás de soslaio, depois para cima.
O balão de repente ganhou asas de pássaro, magia de um queimador de fogo. As gentes tomam tamanho pequeno. E as coisas também.
O pico da catedral da cidade está ao mesmo nível. O ponto mais alto de Viseu.
Telhados amplos, telhados rombos, telhados de vidro. Alguns de lata. Pilaretes, toldos, escadas de pedra e candeeiros de rua. E apitos de carros e mais carros. Cordões de carros. Confusões de trânsito. E as copas das grandes árvores por onde respira a cidade.
Roupas estendidas em arames sobre toldos de lojas. É uma viagem de circum-navegação em espaço aberto pelos limites da circunvalação.
O balão segue às riscas, cor do arco-íris pelo céu azul a contrastar com o cinzento das cores, dos muros de pedra, as águas furtadas de chapéus bicudos virados para o céu.
Fumos de fábrica, cheiros de pão e bolos, o fresco da manhã no cabelo. Portas de museu, recantos históricos, um fio de água.
É uma paisagem de colinas, ruas estreitas, de casas senhoriais, moradias, prédios de tamanhos irregulares, antenas que se multiplicam de fios e ligações.
Lá do alto vislumbram-se perfis de prédios modernos de varandas amplas e terraços. Quadrados de cor verde-jardim. Pedaços de azul que são as piscinas dos hotéis e das moradias de luxo com espreguiçadeiras vazias.
É uma cidade museu em miniatura, mistura de tempos, colagem de uma e outra época, que se avista da tranquilidade do céu azul. Burgo de Viriato a pulsar ao ritmo do mundo moderno.

Aprendiz de fliscorne

O homem deitava-se na enxerga
Depois da taberna

Acendia um cigarro
Com o hálito incendiado

E rogava pragas
Às moscas e às chagas

O cinzeiro
Era o esteiro.

Da pauta pouco ou nada sabia
Tocava de ouvido, convencido

Afinado em Sim Bemol
Improvisava antes de se deitar sobre o lençol

O homem tentava aprender o fliscorne
Por não ter merecido o trombone.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Viúva Negra

Para sair à noite a Viúva Negra vestiu-se de vermelho
Despediu-se do seu vizinho, o Escaravelho.

Ninguém diria que acabava de tecer um casulo
Para onde levaria a vítima - um canto obscuro.

Silenciou-se no caminho
Pôs-se cautelosamente à espera com o ancinho

O pente dourado que usa nas doces conversas de café,
Enquanto eles não caem a seus pés.
Rendez -vous

A vida moderna matou o amor
A viúva negra matou sem provocar dor.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O elogio do velho

Na biblioteca entrou arrojado
O velho – desdentado, de ar desmaiado

Consumiu-se no meio dos livros
De tempos idos, outros perdidos

Recordou vitórias de atleta corrido
A perseguir metas, desmedido

O velho entrou desbocado
E à figura alta deitou o olho alado

Não deixou por mão alheia
A vontade de lhe lançar a peia

Chamou a rapariga no meio da rua
Entre andaimes de obra fez uma jura

A rapariga de cabelo escuro virou-se de repente
Viu um susto de gente

- “Esse corpo é seu, não mente?
Olhe que não dura para sempre!”

Menina Estela

Menina Estela vivia em Agruela
Tinha 77 anos e uma vela
Que levava sempre à missa
- era premissa -

Dançava ao som da panela de pressão
De medir a tensão, descompressada
Sem a pressa desenfreada, coitada
De quem tem um coração.

Bebia copos de vinho tinto
No café do Jacinto
Nunca casou nem amuou
Com os homens que bem amou.

Menina Estela ficava à janela
A ver passar a procissão
E os andores forrados de flanela
Que a inspiravam nas noites de costura e solidão.

Coseu o fato que a levou ao salão
No momento da comunhão
E bordou o manto de oiro e paixão
Que a acompanhou ao caixão.

(À Perpétua, menina avó, que me ensinou a voar. Guardava no quarto dos sonhos uma mala de verniz preto, fato inteiro para o dia completo, sempre fiel ao seu amor)