terça-feira, 26 de agosto de 2008

Consulta de ginecologia

Na sala de espera aguardou ela
Enquanto do “guichet”
Não chamavam o seu número do “ticket”
...
A senhora do lado fazia “croché”
E o marido da outra mulher
Enrolava tabaco, mascava “chiclê”
...
A cadeira esguia
Continuava vazia
À espera da doente que se seguia
...
A médica calçou as luvas brancas
Discorreu sobre precauções tantas
E vislumbrou ovulações quantas
...
No ecrã viu um folículo
Num estranho cubículo
Parecia ridículo
...
A mulher ovulava
A médica argumentava
A recepcionista não se calava
...
O marido permanecia incomodado
Ligeiramente desmaiado
De pálida face, desaconselhado
...
Da consulta de ginecologia
Tinha acabado de sair Maria
Com a sua mania de fazer poesia.
...

Grávida de desejo

Esta noite acordei com sede de ti
Deixas-me grávida de desejo
Num secreto e tal ensejo

Devorei um pêssego
Redondo como a lua
Maduro de tanto esperar

Os despojos,
Mergulhei-os sobranceiros
Atrás do damasqueiro

Levei as unhas à terra
Desapareci na espera
Trouxe pedras e cristais azuis

Dos restos finais
Do fruto que tive
E não tenho mais

Sob o manto do crepúsculo
Remexi no lusco-fusco
Enterrei sobejos tais

Acordei com sede de poesia
E mesmo antes de ver a luz do dia
Tive a sensação de te ver aqui

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Diálogo secreto

Sabes que gosto de ti?
Nunca ninguém chorou assim no meu ombro

Consegui sentir o peso da dor que se ri com os teus olhos azuis
Trocamos a alma em dez segundos de libertação
Tu falas de ti através do olhar profundo que crês secreto
Eu dou de mim em palavras de comiseração

Sabes que gosto de ti?
Os azulejos da casa ouviram os nossos sonhos
A laranjeira dançou e não sabe que o seu fruto será eterno

Imagino-te longe deste mundo
Um anjo
De cabelos de oiro.

A Lua

O gato riscado viu-me esta noite a olhar a lua
A levantar a cortina transparente do meu quarto
A expor-me à janela

A luz às vezes cega
Por isso é que gosto dos dias em que os lagos não reluzem
E os mochos não piam
Espelhados, amargurados

A lua, disse-lhe eu
Mas na verdade procurava o conforto da escuridão
Para enxergar a alma
Ver o que o dia não deixa

Desprender-me da movimentação das horas
E mergulhar nas minhas convicções
A lua, disse-lhe eu.
E apenas o que eu procurava eras tu.

(À minha querida Sandra que ama a lua, os gatos e a vida)

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Aldeia Galega

- É da aldeia? Da aldeia galega?
Beberico o café, exalto-me ligeiramente nos saltos altos e olho as minhas unhas vermelhas.
- Da aldeia? Galega? Não…
A mulher sorri e volta a sentar-se na esplanada, desculpada.
E dou por mim a regressar à redacção, a olhar as pedras da calçada e a imaginar-me essa mulher da aldeia. Galega.
Tem decerto um regaço de filhos e não se preocupa em organizar assuntos por páginas.
Acorda às sete da manha e sorve uma chávena de café. Também.
Café de borras.
Café de borras e os filhos todos no regaço quando acorda.
Eu regresso às páginas de jornal.
Tenho a minha filha no regaço nos intervalos da máquina que imprime o papel.
E que às vezes borra.
Contudo tenho hoje também um ramo de begónias vermelhas sobre a mesa.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Senhora de Mim

Da minha alma sou dona e senhora
Leoa, predadora…
Carneiro enrolado nas manhãs de imaculada aurora.

Durmo e rumino sobre os sonhos
Peço boleia às nuvens dos outros
Navego no bote à deriva, ouvidos moucos.

Num instante sinto no ventre
A vontade de repente
De te ter aqui.

Sou senhora de mim
Ajeito o meu xaile num frenesim
Deito-me enganada sobre o capim.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Carta a Sam


Todas as mulheres são castradoras.
Por estranho que possa parecer, Sam, naquele sábado aprendi muito.
Segui por aquela rua estreita e encontrei a casa feita de barro.
Esperavas-me à porta. Como se tivéssemos um encontro de amantes.
Depois falaste no meu perfume de mulher.
A varanda envidraçada, o sol do campo, em Vila do Paço (Torres Novas), um chá com leite a meio da manhã.
Quadros, música clássica, uma cama escondida por detrás de um biombo. Um robe pendurado num tronco de árvore.
Não há mulheres na casa.
Há latas de conserva. Uma escada de madeira. Um sofá com um tapete de pele. Armários para arrecadar tudo o que faz um homem feliz. Programas de computador, livros de arte.
Múltiplas ramagens nascem da raiz da casa e atingem as vidraças.
O chá arrefece na mesa.
Falamos do sexo dos anjos, do sexo que os miúdos descobrem aos 16 anos e que as miúdas descobrem muito mais cedo. Amadurecidas. Como os frutos que pendem das árvores ali à frente.
Falamos das mulheres castradoras. Da missão de ser mãe. Da mulher que ser deixar de ser mulher. Para ocupar o lugar do homem.
Concordo Sam. Nesse dia aprendi muito, por entranho que possa parecer.
Depois recebi as flores envenenadas. Avisaste-me, Sam, de que deveria ter cuidado.
Tal como tu, que vieste da Austrália a Portugal guiado por estranhas visões, também eu encontrei a tua casa de barro para conhecer a verdade.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Primeira história ou a menina borboleta

Foi há pouco menos de trinta e um anos.
Num jardim de um país rural à beira mar.
A menina passava os dias a voar no quintal da avó.
Com o voo rasante da borboleta fintava cardos e brincos de princesa.
Nem por um segundo desligava as asas.
Um momento de descanso apenas e não mais poderia voar.
Entre viver eternamente no desgaste do voo e ficar para sempre rendida a avistar o céu da terra preferiu a liberdade…